QUEM É O CHICO DO CACHENÉ (corrido em Re)
O "Chico do Cachené"
Tem sempre um grãozinho n’asa
É o Faia mais fadista
Que "habita" na minha casa
Com ele nunca houve tricas / Nem intrigas, nem sarilhos
Gostam dele, e os meus dois filhos / Tanto o Licas como o Tricas
Dizem que amou certa Micas / Que poucos sabem quem é
E que ela passou o pé / Deixando quase no esquife
Num quarto do "Bairro Bife"
O "Chico do Cachené"
Sempre mãos nas algibeiras / Sorriso sempre na "lata"
Na boca sempre a beata / P'ra lhe dar "tic" às maneiras
Atira-se às cantadeiras / E já marcou entrevista
A certa mulher bairrista / Que a altas horas lá cai
Quem for com ele mal não vai
É o Faia mais Fadista
Dizem que aquele chapéu / Que o cachené e a tralha
E que também a medalha / Foi a Micas que lhe deu
Dês' que ela desapareceu / P'ra se atolar mais na vasa
No peito dele, uma brasa / Abrasa-lhe o coração
Pobre Faia. Desde então
Tem sempre um grãozinho n’asa
Outro dia, um badameco / Armou por lá uma cena
Lá porque a sua pequena / Estava a olhar p'ra o boneco"
Ele olhou o "Papo Seco" / E nisto, o "pipi" foi d'asa
Com ele ninguém faz vasa / E ainda mais o admiro
Porque é o tipo mais "giro"
Que "habita" na minha casa
O CHICO DO CACHENÉ (Fado Helena)
Certa vez, foi à noitinha / O Chico do Cachené
Chamou-me e disse: «Farinha
Vou contar-te a vida minha / Para saberes como é
Bem criado e mal fadado / Os meus pais tinham de seu
Por eles era adorado
Instruído e educado / Cheguei a andar no liceu
Ao estudo tomei horror / Era p’ra mim um suplício
Deixei aula e professor: / Fui p’ra aprendiz de impressor
Para uma casa do ofício
Eu era menino e moço / Simples como uma donzela
’Té que um dia – que alvoroço / Fui à Travessa do Poço
Vi a Micas, gostei dela
A casa não voltei mais / Meus pais tiveram desgosto
Calcula: deixei meus pais
Preso nos olhos fatais / Que a Micas tinha no rosto
Com ela aprendi o Fado / O Fado a que te dedicas
Mas sempre, sempre empregado
Que, p’ra mim, era um pecado / iver à custa da Micas
Vivi assim alguns anos / Quatro vezes lhe pus casa
Mas o seus olhos tiranos
Vadios como dois ciganos / Fugiam, batiam asa
Muita vez a fui buscar / Às ruas do outro «fado»
Um dia, p’ra não voltar
Fugiu... É que o seu olhar / Tinha que ser desgraçado
Hoje não tenho um afago / Um carinho, uma afeição
Sou um esquecido, mal pago
É no vinho que eu apago / O fogo desta paixão
Depois de contar-me a vida / O Chico pôs-se de pé
Pediu mais uma bebida
E uma lágrima atrevida / Caiu-lhe no cachené
A MICAS ERA UMA JÓIA (Fado Marcha Manuel Marias)
Todos cantam a odisseia / Do Chico, com simpatia
Mas ninguém diz que, ao velhaco
Quando estava na cadeia / Era a Micas quem lá ia
levar onças de tabaco
Não vivia à custa dela / Não fazia dela escrava
Louvo-lhe esses sentimentos
Mas muita, muita farpela / Era a Micas que a comprava
Numa loja, a pagamentos
A Micas era uma jóia / Leviana, sim, talvez
No fundo, uma desgraçada
Certa vez, numa rambóia / Por nada que ela lhe fez
Ele moeu-a à pancada
Resultou, dessa tareia / da forma de a agredir
O ser preso... e até se diz:
Só esteve um mês na cadeia / Porque a Micas foi pedir
por ele, ao Doutor Juiz
Também se deu um sarilho / uito grande, entre ela e ele:
A mãe dela mo contou
A Micas tivera um filho / Um filhinho que era dele
E que ele não perfilhou
Não vim para a defender / Nem levantar-lhe degrau
No trono das desgraçadas
Mas costuma-se dizer / Que quando cachorro é mau
Todos lhe atiram pedradas
BÊBADO, BATOTEIRO E DESORDEIRO (Fado Corrido em Fa)
Ele ganhava um quartinho
Era sempre o que ganhava
Mas gastava tudo em vinho!
E às vezes não lhe chegava
Conheci-o, meus senhores / De "setenta", de "ginjeira"
Numa banca pataqueira / Ali p'ra os Restauradores
Como tod'os jogadores / Andava sempre a caminho
Da tavolagem, p'ro "pinho" / Sempre a pedir emprestado
Mas não era precisado
Ele ganhava um quartinho
Entrou na Dança da Bica / Lembro-me, era eu criança
Fez com que acabasse a dança / E foi parar à Botica
Uma outra vez, em Benfica / Em que o Brito improvisava
Ameaçou quem lá estava / E desafiou uns poucos
Por fim, apanhou dois socos
Era sempre o que ganhava
A Micas gostava dele / Chamava-lhe o "seu menino"
Sei que lhe deu um varino / Com uma gola de pele
Deu-lhe um relógio, um anel / 'Té o próprio "pianinho"
Em que tocava o fadinho / Ela lho dera também
O Chico ganhava bem
Mas gastava tudo em vinho
O "Chico do Cachené" / É tatuado no peito
Prestou-se a isso o sujeito / Quando esteve em S. José
Se isto é verdade, ou não é / Não sei: era o que constava
A "massa" que lhe emprestava / O Samuel agiota
Era toda pr'à batota
E às vezes, não lhe chegava
AS MÁS COMPANHIAS (Fado Vianinha)
O Chico fez tropelias
E deu aborrecimentos
Só devido às companhias
E não aos seus sentimentos
Cantava o Fado, era faia / Bebia, jogava à chapa
Mas sempre vestia capa / Pelo círio da Atalaia
A Micas era da laia / Das que fazem judiarias
Duma vez andou dez dias / Afastada do cortiço
Como não gostava disso
O Chico fez tropelias
Certa vez que o Chico foi / Às toirinhas em Palmela
Era ouvir o grito dela / O meu Chico hoje é um boi
Sou mulher, Deus me perdoe / Que este e outros argumentos
Venham a ser elementos / P’ra quem o Chico processa
A Micas era má peça
E deu aborrecimentos
Numa certa terça-feira / Foram ambos para a esquadra
Porque na Feira da Ladra / Ela armou em desordeira
Fora que a Júlia Cesteira / Adela nas Olarias
E dava ali os «bons-dias» / Pisou a saia da Micas
O Chico meteu-se em tricas
Só devido às companhias
Outra vez, p’lo Carnaval / Foram ao baile à Trindade
Pois diga-se à puridade / Que ambos não dançavam mal
Um guarda municipal / Disse dois atrevimentos
O Chico deu-lhe dois «tentos» / E tudo isto presume
Que levou tudo ao ciúme
E não aos seus sentimentos
BOÉMIO, VALENTE E ARTISTA (Fado Mouraria)
Vingava a honra ofendida
Tinha uma alma altruísta
Antes do Fado ser Arte
Já a Chico era um Artista
Certo "Amigo de Peniche” / Que ele julgava uma jóia
Viu-o ele de tipóia / Com a Micas, em Carriche
Viu-os, aguentou-se fixe / Mas não gostou da partida
Depois, 'spancou a atrevida / E o amigo de má-fé
Era assim o «Cachené»
Vingava a honra ofendida
Teve amigos verdadeiros / Escritores e doutores
Tu cá, tu lá, com actores / Tu lá, tu cá, com toureiros
Deu-se até com Conselheiros / E com muito Jornalista
Foi o melhor "Cancanista" / Do Baile dos Quintalinhos
E, entre vários pergaminhos
Tinha uma alma altruísta
Em noites de S. João / Passava noites inteiras
Dançando valsas rasteiras / Mazurcas, Polca a Tacão
Palhinhas e jaquetão / Calça branca, ou de zuarte
Nas feiras, por toda a parte / Com titulares, com ciganos
Passou-se isto há trinta anos
Antes do Fado ser Arte
Jogava o Pau e à Espada / Em qualquer jogo, era rijo
Uma tarde, no Montijo / Varreu a Vila à paulada
Em muita espera e toirada / Deixou a perder de vista
Muito forcado burlista / E, nos sectores da "Canção"
'Inda não davam cartão
Já o Chico era um Artista
SENTENÇA (Fado Carlos da Maia sextilhas)
O Chico do Cachené / Já todos sabem quem é
É um boneco inocente
Sem gestos, sem atitudes / Sem defeitos, sem virtudes
Um boneco, simplesmente
Concebido e modelado / P’la nossa imaginação
Com barro de fantasia
É um sopro do passado / Um pouco de tradição
De sonho e de poesia
Criámo-lo à nossa imagem / Com mais ou menos verdade
Somos os seus criadores
Rendemos-lhe vassalagem / Porque fala de saudade
E até dos nossos amores
Pretendemo-lo julgar / Vimos que ele era, porém
Filho do meio ambiente
E que era um caso vulgar / Era um tudo de ninguém
Um nada de toda a gente
Ninguém com certeza ignora / Que estivemos evocando
A tradição, o passado
Bendita esta «Boa-Hora» / Onde estivemos brincando
Com as guitarras e o Fado
Não se provou a má fé / Nos pecados do arguido
Que as paixões não nos iludam
O Chico do Cachené / Está, portanto, absolvido
«Leis do Fado não se mudam»
Linhares Barbosa ainda escreveu mais uma letra sobre o «Chico do Cachené»
para o cartaz que anunciava a representação de 1948 no Café Luso, intitulada
"Alguns Comentários" onde fazia a apresentação do elenco e onde se vê
que alguns dos fadistas e instrumentistas da primeira representação
foram substituídos:
LEIS DO FADO NÃO SE MUDAM
(Bocage)
O Chico, mais uma vez
Foi preso e vai ser julgado
«Leis do Fado não se mudam»
Reza um antigo ditado
Cumprindo das leis o uso / O Chico vai a Juízo
Porque o juízo é preciso / E o Chico ao juízo é escuso
Vai ser julgado no «Luso» / Lá para o fim deste mês
Será punido?... Talvez! / Esperemos que a Justiça fale
Enfim, vai a tribunal
O Chico, mais uma vez
Já anda metendo cunhas / Para não ser condenado
Mas não leva um advogado / Um daqueles que tem «unhas»
Conhecem-se a testemunhas / É tudo gente do Fado
Vai a Lourdes do Machado / O Farinha, o Gabino
Pobre faia!... É o destino!
Foi preso e vai ser julgado
Vai o Jacinto Pereira / Que o deseja ver na montra
E também vai depor contra / A Natália, a galinheira
A Márcia, outra cantadeira / Vai pedir que ao Chico acudam
Mas estas coisas não grudam / Nem convencem os jurados
O Chico tem seus pecados.
«Leis do Fado não se mudam»
Sempre metido na «Adega / Do Machado», o infeliz
Comia e bebia a «giz» / E apanhava a sua cega
O Flávio, este não sossega / O Amando anda enervado
O Nery, vai estar ao lado / Do Chico do Cachené
O que nos salva é a Fé
Reza um antigo ditado